No pós-guerra a fome
era grande. O pão era racionado. Na escola, Henrique repartia seu lanche
com Werner Gitt. Muitas vezes matou sua fome. Depois de décadas, os
dois colegas se reencontraram.
Voltando no tempo
Até que nos mudamos para Hohenlimburg (Westfália, na Alemanha) em
1950, fui à escola em Lüchow, no Nordeste da Baixa Saxônia. Depois da II
Guerra Mundial, a Alemanha estava arrasada, a comida era pouca e o pão
era racionado. Para comprar esse alimento, só com os cupons de
racionamento. O pão era mercadoria rara, literalmente. A fome era uma
companheira constante. Mas eu não passava tão mal assim porque tinha um
colega muito amigo que sentava do meu lado na escola. Era Henrique,
filho de agricultores de uma aldeia dos arredores da minha cidade. Todo
dia ele trazia um pacote de pão com manteiga tão gostoso que me dava
água na boca. O lanche vinha recheado com algum tipo de salame, presunto
ou alguma outra iguaria a que eu normalmente não tinha acesso. Muitas e
muitas vezes Henrique repartiu seu lanche comigo e matou a minha fome.
Eu era aluno da cidade, portanto, sem os recursos que os moradores do
campo dispunham com suas criações de animais e as mais variadas
plantações. Talvez por isso Henrique seja o único colega de escola de
quem ainda me lembro depois de 60 anos. Ele sentava do meu lado e
repartia seu pão comigo... Dos outros colegas me esqueci, mas o nome
dele ficou para sempre na minha lembrança. Depois que nos mudamos,
nossos caminhos se separaram. Nunca mais vi Henrique.
Voltando aos lugares do passado
Ultimamente eu andava falando muito das aldeias e vilas onde me
criei, dos lugares onde minha família morou, das pessoas do meu
passado... E falava da irmã Erna, de quem ouvi o Evangelho pela primeira
vez. Aí minha filha Rona achou que estava na hora de visitar os lugares
da minha infância. Em meados de julho de 2010 começamos nossa viagem em
busca de um passado tão distante. Saímos de Braunschweig, pernoitamos
em um hotel de Lüchow e fizemos um roteiro por todas as aldeias que
pudessem ter alguma relação com meu passado e com meu tempo de menino.
Um dos nossos destinos era Klein-Witzeete, uma pequena aldeia com uns
500 moradores. Até hoje não esqueci o nome desse lugarejo, mesmo que há
60 anos atrás nem tenha estado lá pessoalmente. Gravei esse nome na
minha memória porque Henrique, meu colega de escola, era dessa vila e
todos os dias se deslocava para freqüentar as aulas junto comigo. Assim,
Rona e eu procuramos uma lista telefônica para ver se, por acaso, ele
ainda estava vivo. De fato, seu nome constava na lista! Quem atendeu o
telefone foi sua esposa, Edite. Quando me apresentei como ex-colega de
seu marido, ela nos convidou para visitá-los. Nem meia hora depois já
estávamos no sítio de número 5 dessa idílica aldeia iluminada por um
dourado e luminoso pôr-do-sol. Foi um reencontro muito alegre. Henrique
contou que trabalhou a vida inteira nas terras herdadas da sua família.
Hoje o trabalho está nas mãos da filha e do marido dela. Henrique também
mencionou que sua saúde não andava muito bem. Por isso, na hora da
despedida perguntei se podia orar por ele. Ele concordou, eu orei e
fomos embora dessa casa, nossa última parada do dia.
No dia 1 de março do ano seguinte recebi uma ligação de Edite,
contando que Henrique estava hospitalizado com uma doença rara, a
Síndrome de Wegener, e que estivera em coma por 5 semanas. Disse que ele
não conseguia mais mexer as mãos e os pés e estava na UTI, respirando
por aparelhos.
Perguntei a Edite se podia visitá-lo. Quando ela disse que sim,
decidi viajar com Rona outra vez. Partimos no sábado, 10 de março de
2012. Depois de vestir o jaleco esterilizado, a touca e a máscara,
entramos num quarto muito iluminado e cheio de aparelhos. Por meio de
cabos e mangueiras Henrique estava conectado a máquinas e monitores com
diagramas, curvas e números. Minha primeira pergunta foi: “Henrique,
você sabe quem sou?”. Ele reagiu com a maior alegria possível em seus
olhos azuis profundos e claros. Mais uma vez contei para ele a velha
história do lanche repartido e disse que, na eternidade, Jesus
recompensaria até um gole de água fresca oferecida a um sedento. E
quando contei que certamente o Senhor recompensaria ainda mais seu pão
repartido com um colega esfomeado, um largo e radiante sorriso se
espalhou por seu rosto. Senti que ele estava se abrindo para ouvir mais
do Evangelho e que essa era uma hora especial da presença de Deus e da
manifestação de Sua graça.
Falei da nossa vida humana, contei que todos nós passamos alguns anos
aqui na terra e depois morremos – alguns depois de 40 anos, outros
depois de 60, 70 ou 80, e salientei que a morte é certa para todos.
“Henrique, se você morrer hoje, você sabe para onde vai?”, perguntei.
Mesmo não conseguindo mexer seu corpo, sua mente estava lúcida, e ele
conseguia se expressar, mesmo que com certa dificuldade. Respondeu minha
pergunta com um sonoro “Não!” – “Henrique, você quer saber se vai para o
céu ou para o inferno? Você quer ter certeza para onde vai depois da
morte?” – “Sim, eu quero!”
Falando de Jesus
Nessa situação, resumi o mais que pude a mensagem da salvação em
Cristo. Mostrei que toda a culpa que acumulamos durante nossa vida
precisa ser perdoada para que alcancemos o reino dos céus. Falei que
Jesus morreu justamente por isso, para pagar por nossos pecados quando
entregou Sua vida por nós na cruz do Calvário. Henrique acompanhava e
entendia tudo o que eu ia dizendo. Então, fiz uma oração de entrega de
vida ao Senhor, e ele foi repetindo lentamente as minhas palavras,
entremeadas de pequenas pausas para tomar fôlego. Voltei a perguntar: “E
agora, Henrique, se você morrer hoje, sabe para onde vai? Você tem
certeza que vai para o céu?” Ele respondeu com um claro e convicto
“Sim!”. Para fortalecer sua fé, li a marcante passagem de Romanos
8.38-39, que nos dá a garantia de que estamos seguros em Cristo para
todo o sempre:
Jesus disse: "Eu sou o pão da vida; o que vem a mim jamais terá fome; e o que crê em mim jamais terá sede." (Jo 6.35).
“Porque eu estou bem certo de que nem a morte, nem a vida, nem os
anjos, nem os principados, nem as coisas do presente, nem do porvir,
nem os poderes, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra
criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus,
nosso Senhor”.
Quando Rona perguntou se deveríamos ir embora para não cansá-lo
demais, ele falou categoricamente: “Fiquem!” Mais tarde, ao partir,
oramos juntos o Salmo 23. Ele ainda sabia de cor alguns versículos!
Acompanhado da minha filha
Para mim como pai foi muito comovente ter minha filha comigo nas duas
ocasiões em que encontramos Henrique. Ela esteve presente no nosso
reencontro depois de 60 anos e agora tinha a oportunidade de ver o
Senhor abrindo as portas do céu para uma pessoa que abriu seu coração
para Ele. Só posso manifestar minha profunda admiração pelo planejamento
preciso da agenda divina. Se não tivéssemos visitado Henrique naquela
ocasião nem saberíamos que agora ele estava tão doente, e nem teríamos
feito nossa visita no hospital. Nessa situação a passagem de Eclesiastes
11.1 adquiriu para mim um significado todo novo e muito profundo: “Lança o teu pão sobre as águas, porque depois de muitos dias o acharás”.
Um menino compartilhou seu pão há mais de 60 anos, e depois de tanto
tempo quem recebeu o pão devolvia o favor trazendo-lhe o Pão da Vida.
O calendário de Deus
Exatos dez dias após nossa visita, Henrique faleceu. Quando Edite
chegou à UTI, ficou sabendo que ele partira para a eternidade há 15
minutos. Os enfermeiros haviam colocado o presente de Rona em suas mãos
dobradas em oração: uma cruz com a inscrição “Eis que estou convosco”. O
enterro foi na aldeia vizinha, distante apenas três quilômetros de onde
ele morava e onde tinha nascido. A bela igreja do velório de Henrique
foi a mesma onde ele casou com Edite. E agora, com a presença de muitas
pessoas dos arredores, ele se despedia da vida nesse mesmo lugar. Depois
do enterro, como é costume na Alemanha, umas 80 pessoas se reuniram.
Nesses encontros as pessoas costumam rememorar a vida de quem acabou de
falecer. Comecei minha fala dizendo: “Aqui ninguém me conhece. Acho que,
excluindo Edite, eu sou a pessoa que conhece Henrique há mais tempo”.
Com isso ganhei a atenção de todos. Me apresentei para que todos
soubessem quem eu era e o que me ligava com Henrique e com as aldeias
dessa região.
Contei a história da minha fé, que teve seu início por meio da irmã
Erna, também dessa região. Contei que minha fé foi crescendo e conduziu à
minha conversão a Jesus Cristo durante uma evangelização em 1972.
Quando relatei meu reencontro com Henrique, o silêncio era total.
Ninguém queria perder um único detalhe dessa história tão emocionante.
Mencionei que há poucos dias eu já havia relatado meu reencontro com
Henrique por ocasião de uma evangelização numa cidade grande da região, e
que eu tinha CDs gravados com a mensagem à disposição de quem quisesse
levá-los de presente. Com alegria muitos aceitaram a oferta. Meu vizinho
de mesa avaliou minhas palavras, dizendo: “Coisa melhor não poderia ter
acontecido!”, referindo-se aos amigos e parentes enlutados reunidos
ali. O filho de Henrique estava muito feliz ao saber que o pão repartido
por seu pai há tantas décadas tinha ficado em tão grata memória.
Alguém veio falar comigo sobre a irmã Erna. Contou que a conhecera
pessoalmente: “Ela ia de aldeia em aldeia com sua bicicleta, cuidando e
tratando dos enfermos. Sua roupa e sua touca de enfermeira já mostravam
de longe que ela vinha chegando”. Mencionei as palavras de outra mulher
da região que tínhamos encontrado em nossa busca pelo passado: “Irmã
Erna foi a boa alma desta região”.
Essa experiência foi muito marcante. É impressionante ver a direção
de Deus envolvendo longos períodos de tempo. Henrique foi meu colega,
sentava do meu lado no banco escolar. Isso estava nos planos de Deus. E
Seu planejamento invisível já previa nosso reencontro muitos anos
depois. Vemos que nunca é tarde demais no calendário de Deus. (ethos — chamada.com.br)
http://www.chamada.com.br/mensagens/lanca_teu_pao_sobre_as_aguas.html
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