Israel como exemplo de caso
A existência do Estado de Israel tem algum significado teológico
relevante para nós? Ou é apenas um fato político “normal” sem relação
direta com a história da salvação divina e com nosso entendimento
bíblico? Essas duas posições diferentes são defendidas por cristãos que
se consideram fiéis à Bíblia. Na história da interpretação bíblica o
caso de Israel sempre foi emblemático e desempenhou um papel-chave para
entender o que a Bíblia diz e demonstra como lidar com outros textos
proféticos: Jesus estabelecerá um reino de mil anos de paz (o Milênio)?
As profecias ainda não cumpridas do Antigo Testamento se cumprirão
literalmente? A Igreja de Jesus substituiu o antigo povo de Israel?
Usar Israel como exemplo de caso adequa-se para estudar e
entender qualquer outro texto profético da Bíblia. Dentro da brevidade
aqui exigida tentaremos analisar as questões hermenêuticas (relativas à
interpretação) que devem ser esclarecidas se quisermos compreender
corretamente o que a Bíblia tem a declarar acerca do futuro.
1. Os dois polos na questão de Israel: substituído pela Igreja ou promessas concretas para o futuro do antigo povo de Deus?
Vamos limitar-nos à comparação entre essas duas correntes antagônicas
sem entrar no fato de que nos dois “campos” existem ainda mais
diferenciações e variantes.
a) Teologia da substituição: as promessas feitas a
Israel e ainda não cumpridas foram transferidas à Igreja de Jesus.
Promessas terrenas (como o retorno à terra de Israel) não se cumprirão
literalmente; elas foram transferidas simbólica e espiritualmente à
Igreja do Novo Testamento. Essa posição é conhecida como a Teologia da Substituição,
já que substitui o povo de Israel (como etnia) pelo Israel
“espiritual”, a Igreja. Dentro dessa concepção o retorno do povo de
Israel à sua terra não teria qualquer significado profético no plano
divino de salvação.
A tese de que a Igreja substituiu Israel é um elemento básico no Amilenismo,
que ensina que não haverá um reino de mil anos literal (Milênio).
Segundo essa corrente, aquilo que Apocalipse 20 descreve já começou por
ocasião da primeira vinda de Jesus e perdurará até Sua volta. Essa é a
posição clássica da teologia reformada (e em parte da luterana).
Com isso desaparecem quase todas as diferenças entre o Antigo e o
Novo Testamento, a Aliança Abraâmica vale tanto para Israel como para a
Igreja (“Teologia Aliancista”). Segundo Calvino, o Israel do Antigo
Testamento já era a Igreja “como que na infância” (Institutas II, 11.2).
O “Israel verdadeiro” é absorvido pela “Igreja de Jesus”, existe apenas
uma “comunhão dos crentes, e essa comunhão existia desde o início da
antiga ordem até o tempo atual e existirá na terra até o fim do
mundo”.[1]
b) Cumprimento literal: as promessas ainda em aberto
para Israel como povo se cumprirão literalmente no futuro. Delas fazem
parte a conversão do remanescente (“todo o Israel”, Rm 11.26) ao Messias
em conexão com a volta de Jesus e então sua existência sem opressão em
sua própria terra (“restauração de Israel”). Dentro dessa perspectiva, o
retorno do povo secular à terra de Israel depois da Segunda Guerra
Mundial faz parte do cumprimento do plano divino. E esse retorno cria as
condições para os futuros eventos de Zacarias 12 a 14.
Dentro dessa perspectiva esperamos um cumprimento literal das
promessas de um reino milenar, para cujo estabelecimento o Senhor
voltará. Essa é a posição do Pré-Milenismo (Jesus virá antes do estabelecimento do Milênio real). Na Europa essa posição ficou mais conhecida como Dispensacionalismo.[2]
Mas nesse debate não deveríamos nos ater a “rótulos”, já que não existe
um Dispensacionalismo fechado, mas diversas variantes agrupadas em
volta de uma idéia central.[3] Repetidamente os detratores do
cumprimento literal esboçam a caricatura de um Dispensacionalismo
extremado. Aí surge a impressão de que todos os que esperam pela
restauração de Israel e por um Milênio literal também apóiam doutrinas
dispensacionalistas particulares (por exemplo, que o Sermão do Monte se
aplica somente ao Milênio...). Esse definitivamente não é o caso!
Com isso chegamos a um resultado intermediário: as posições “a” e “b” se excluem mutuamente e exigem um posicionamento. Que pontos de orientação nos seriam úteis nessa tomada de posição?
2. A posição reformada acerca das Escrituras: retorno ao sentido literal da Bíblia.
Um propósito central dos reformadores era o retorno a um entendimento claro da voz das Escrituras (claritas scripturae).
Isso exigiu da parte deles uma postura firme contra a arbitrariedade na
exegese das Escrituras que se instaurara ainda nos primeiros séculos da
História da Igreja. Na época, ao invés de aceitar o sentido literal dos
textos como determinante, buscava-se um sentido “múltiplo” no que as
Escrituras declaram. Com isso abriram-se as portas para todo tipo de
alegoria (simbolismo), espiritualização e reinterpretação do texto
sagrado. Isso conduziu a uma deturpação das verdades que Deus havia
revelado aos escritores da Bíblia.
Um dos protagonistas dessa “espiritualização” foi Orígines, um dos
pais da Igreja (185-254), posteriormente criticado duramente, e com
justiça, por Martim Lutero. À alegoria e à arbitrariedade na exegese de
textos bíblicos os reformadores contrapunham sua reivindicação central:
válido seria o sentido simples e evidente das Escrituras, o sentido
“literal”. Segundo essa idéia, um texto bíblico deve ser interpretado da
forma mais próxima possível de seu sentido original, o mais perto
possível daquilo que seus autores originais queriam dizer, sempre
levando-se em consideração a gramática, o uso idiomático e o contexto da
passagem.
3. Como os reformadores entendiam Israel
Tendo em vista essa regra de aceitação do sentido literal de uma
passagem bíblica, é surpreendente que os principais reformadores não a
aplicaram quando se tratava da questão de Israel. Enquanto Lutero, em
sua antiga interpretação de Romanos (de 1515 a 1516) ainda dizia que no
fim dos tempos uma grande parte do povo judeu como “remanescente” étnico
(como coletividade nacional) iria converter-se a Jesus, mais tarde
afastou-se dessa interpretação. Calvino também explicou Romanos 11.25ss.
– contrariando o sentido literal e o contexto – como a comunidade de
judeus e gentios que viriam a crer em Cristo no decorrer de toda a
história eclesiástica. Isso correspondia à sua idéia de uma só Igreja
“desde o princípio até o fim do mundo” (veja o Catecismo de Heidelberg,
pergunta 54).
Como foi possível essa “desapropriação” de Israel, com suas promessas
especiais transferidas para a Igreja? Certamente as questões
escatológicas não foram as que mais ocuparam a atenção dos reformadores.
As batalhas teológicas mais decisivas aconteciam em outras áreas,
especialmente na questão da salvação e acerca da doutrina da
justificação.
Na área da Escatologia os reformadores ficaram presos à posição
encontrada em Agostinho, um dos pais da Igreja (354–430). Mas já antes
dele, ainda no segundo século, a igreja primitiva tinha começado a ver a
si mesma como única herdeira das promessas feitas a Israel (carta de
Barnabé, Justino Mártir). Oríogenes, com seu método alegórico, forneceu
as ferramentas que possibilitaram transferir para a Igreja as passagens
que eram destinadas a Israel. Mais tarde, a Igreja Católica Romana
defendeu seu poderio e sua suposta eleição com todos os meios possíveis e
imagináveis. Ela já não tinha o mínimo interesse em devolver as
promessas feitas a Israel a seus verdadeiros e originais destinatários.
Em seu reino milenar presente (amilenismo!), Cristo já estaria há muito
reinando através do papado.
menos na questão do Milênio, nos três primeiros séculos a Igreja
antiga ainda tentava preservar a substância bíblica, mantendo a
doutrina de um Reino futuro. No mais tardar com Agostinho começou,
também nessa questão, um afastamento do sentido literal da Escritura, e
esse afastamento tornou-se predominante em toda a Igreja. E os
reformadores, mais de mil anos depois de Agostinho, pelo visto não
dispunham do tempo nem da necessária clareza para impor a validade de
seus princípios escriturísticos à questão de Israel. Hoje, quem quiser
se reportar conseqüentemente à Reforma nesse sentido, precisa ir
decididamente além dos reformadores e aplicar a literalidade do texto
sagrado a todas as questões, inclusive à questão de Israel. Caso
contrário, ficará preso a um confessionalismo tradicionalista.
4. O sentido literal de textos proféticos
O leitor da Bíblia encontra-se diante de uma alternativa bem clara:
estou disposto a deixar que o texto fale por si mesmo ou leio o texto
bíblico através do filtro de um certo sistema teológico? É óbvio que
nenhum leitor da Bíblia se aproximará do testemunho das Escrituras
completamente isento do conhecimento que já tem e das convicções já
formadas em seu coração . Cada um de nós tem a tendência de considerar
sua própria explicação como a opção correta (até então), que também
deveria fazer sentido para todos os outros.
Apesar desse elemento humano, a Palavra de Deus comprovou sua força
fazendo-se entender e se impondo como verdade, mesmo diante dos maiores
disparates.
Vejamos um exemplo para comprovar essa afirmação: o Antigo Testamento
constantemente associa a renovação do coração do povo judeu com sua
volta à terra. Sobre isso basta ler Ezequiel 36.24-28; Ezequiel
37.12-26; Amós 9.11-15 (comp. Jr 16.15; 23.8; 24.6; 31.8,23-34). Quem
estudar esses textos encontrará declarações bem claras do Deus vivo
acerca de Israel, Seu povo escolhido. A base para ligar a salvação com a
terra é a Aliança Abraâmica (Gn 13.15; Gn 17.6-8, etc). Essa aliança é
incondicional, ou seja, não impõe condições para ser válida nem depende
da obediência de Israel. Como Deus iria invalidá-la?
No Novo Testamento essa promessa feita a Israel volta a ser
reafirmada e não há uma palavra sequer dizendo que ela foi revogada ou
invalidada, nem mesmo quando trata da unidade entre judeus e gentios
formando juntos a Igreja (Ef 2.11ss.; Rm 11.17-24). E quando, por
exemplo, Tiago cita em Atos 15.15-20 a promessa de Amós 9.11-12 feita
para Israel nos tempos finais, ele não afirma, de forma alguma, que essa
promessa já se cumpriu na Igreja ou com a Igreja. O que Tiago mostra ao
citar essa passagem é que os planos futuros que Deus tem para Israel de
forma alguma representam algum prejuízo para os gentios: se Deus, no futuro,
plantar definitivamente Seu povo na terra de Israel, isso também será
uma bênção para os gentios. Isso combina e se harmoniza perfeitamente
(At 15.15), de forma que não podemos nem devemos excluir da Igreja os
gentios convertidos nem considerá-los “cristãos de segunda categoria”.
Os dois casos (cumprimento futuro da promessa de Amós e o atual
ajuntamento da Igreja) são regidos pelo mesmo princípio: a bênção de
Deus para judeus e a bênção de Deus para os gentios não são excludentes;
elas incluem a ambos.
No Novo Testamento não há um único texto questionando a validade das
promessas do Antigo Testamento feitas a Israel. Tudo o que o Novo
Testamento diz sobre Israel e seu futuro converge para sua conversão a
Jesus como seu Messias e a um cumprimento abrangente e pleno de todas as
profecias. Numerosas afirmações (por exemplo, Mt 19.28; Mt 23.37-39; Lc
21.24; Lc 22.30; At 1.6; Rm 11.25-27) reforçam a esperança de Israel
porque foram feitas pelo próprio Senhor Jesus (e depois confirmadas por
Paulo).
Jacob Thiessen fez uma análise mostrando como são sólidas as fontes
neotestamentárias garantindo uma restauração final de Israel (Israel und die Gemeinde [Israel
e a Igreja], 2008). E Michel J. Vlach provou em sua dissertação que,
onde o Novo Testamento complementa promessas do Antigo Testamento e as
aplica a situações atuais (por exexemplo Amós 9.11ss. em Atos 15.15ss.),
isso nunca acontece de forma a anular seu sentido original ou literal
nem as retira de Israel.[4]
Por isso, sempre vale a pena batalhar pelo literalismo bíblico,
inclusive quando a questão é Israel. O que está em jogo não é nada mais,
nada menos que a fidelidade das promessas de Deus, que não deixará ao
léu a menina dos Seus olhos (Zc 2.12; Dt 32.10). Igualmente em jogo está
a nossa própria fidelidade para com o sentido verdadeiro do texto
sagrado. Quem se desvia dele para satisfazer algum sistema teológico
corre o risco de repetir o mesmo erro em outras áreas. Que Deus nos
proteja disso! (Dr. Wolfgang Nestvogel - http://www.chamada.com.br)
Wolfgang Nestvogel é pastor da Igreja Evangélica Professante de Hannover (Alemanha).
Notas:
- L. Berkhof, Systematic Theology, 1969, p. 571.
- Todo dispensacionalista também é pré-milenista. Mas a afirmação não é válida ao inverso: existem pré-milenistas que não compartilham de certas posições dispensacionalistas. Por isso existe a diferenciação entre pré-milenistas “dispensacionalistas” e “históricos”.
- A Bíblia de Estudo Scofield documenta o dispensacionalismo clássico da geração mais antiga enquanto um autor importante como John Walvoord defende um dispensacionalismo revisado, e outra diferenciação acontece no dispensacionalismo progressivo (a partir de 1986), defendido por C.A.Blaising e outros.
- Michal Vlach, The Church as a Replacement of Israel? An Analysis of Supersessionism, Frankfurt, 2009.
fonte:http://www.chamada.com.br/mensagens/entender_profecias.html
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